Rede Ciberativistas Negras: pela liberdade de corpos, vozes e softwares

Foto: Thomaz Rodriguez

Texto: Márcia Schuler

Se liberdade, cooperação e descentralização são princípios do software livre, também o são para o movimento de mulheres negras. E, entre as muitas necessidades latentes em um mundo extremamente desigual — dentro e fora das redes –, são muitas as buscas por liberdade: de falar, de existir, de resistir, de criar, de transformar, de copiar, editar, distribuir e adaptar.

Sabe-se que a população negra sempre ocupou espaços de comunicação, historicamente subordinada às condições políticas. Mas foi a partir dos anos 2000 que a expressão cresceu. “A gente sempre esteve nesses espaços, mas o grande marco foi o surgimento do blog Blogueiras Negras. Isso mudou totalmente a forma de comunicação e ativismo no Brasil”, avaliou Natália Neris, pesquisadora e ativista da Rede Ciberativistas Negras, durante fala no FISL 18.

Com a internet e as redes sociais, houve uma pluralização e um maior alcance das vozes — hoje, há portais como Mundo Negro e Afropress, por exemplo, produzindo conteúdos focados no combate à opressão de raça. Nas redes como o Facebook, essa voz é ainda mais forte, e páginas como Pretas e Acadêmicas e Central das Divas fazem também um recorte de gênero.

Natália acredita que um dos grandes desafios atualmente é vencer a disputa de discursos na esfera pública — na mesma medida que as vozes contra a opressão foram amplificadas, também os discursos de ódio se proliferaram. Ela traz dois dados alarmantes do autor Roderick Graham: entre 2000 e 2013, houve um crescimento de 67% no número de grupos com conteúdo supremacista branco.

Outro dos desafios é a concentração de conteúdo em plataformas proprietárias como o Facebook. Natália aponta que, apesar da emancipação que a rede social representou em relação à mídia tradicional, ela também é restritiva, uma vez que os algoritmos formam bolhas em que a comunicação acaba sendo feita sempre para as mesmas pessoas já sensíveis ao tema. Isso, na prática, significa um obstáculo à diversidade. Ainda que haja a possibilidade de segmentar mensagens e direcionar anúncios e postagens a públicos específicos, há falta de transparência para se saber quem faz isso, a quem direciona e quais são as razões do direcionamento.

Natália acrescenta ainda que faltam informações sobre os critérios de distribuição de conteúdo, o que dificulta a criação de estratégias de alcance. Além disso, o acesso pago é um entrave adicional, uma vez que deixa em desvantagem quem tem menos recursos financeiros.

Outro obstáculo foi identificado em um estudo realizado pela pesquisadora durante o período em torno do Dia da Consciência Negra: os casos individuais de racismo acaba tendo mais impacto nas redes do que discussões sobre racismo estrutural (o estudo está disponível no site http://www.internetlab.org.br/pt/desigualdades-e-identidades/como-se-discute-racismo-na-internet-um-experimento-com-dados-no-mes-da-consciencia-negra).

Em outro trabalho, Natália observou as postagens relacionadas ao Dia Internacional da Mulher e constatou que, apesar de grupos de esquerda produzirem mais conteúdo, os posts de setores da direita acabavam tendo um alcance maior. “A gente não tem um problema de produção de conteúdo de pessoas negras, mas temos problema em relação ao alcance. Isso acontece pelo racismo, mas também por causa da forma como as plataformas funcionam. É preciso estudar diferentes estratégias de disseminação”, afirmou.

Representatividade importa

Instigada pela blogueira Larissa Santiago, a jornalista Viviane Gomes visitou a página do CGI.br em busca de informações sobre o modelo brasileiro de governança da internet. Encontrou um vídeo sobre o assunto, mas foi outro ponto que chamou a atenção: a maioria das pessoas apresentadas era de homens brancos. “Estou falando isso porque diz muito sobre o desenvolvimento da tecnologia no país. Eu não me vejo ali. E falar sobre representatividade importa, sim”, disse.

Viviane citou uma passagem do livro Internet Código Feminino, organizado por Graciela Natansohn, que explica bem o tema: “O desenvolvimento das tecnologias não escapa das relações de poder que produzem desigualdades e contradições nas dinâmicas de acesso, desenho e produção das TICs entre mulheres, homens, negras (os) e brancas (os) e pobres e ricas (os).”

Ainda citando a obra, Viviane ressalta que os artefatos tecnológicos são, sim, políticos, e incorporam visões de mundo e formas de exercício de poder. A jornalista lembra que, apesar de considerar que a internet brasileira começou de fato em 1992, com a Eco-92, a presença de corpos negros e indígenas na universidade, por exemplo, ocorreu massivamente no país apenas em 2004, com as políticas afirmativas. “Isso envolve a nossa participação, pois tivemos um gap em relação à educação e à tecnologia. Até então, os outros falavam por nós”, disse.

Ciberativistas negras

Viviane acredita que houve avanços, mas é preciso ampliar a representatividade das mulheres negras e garantir esse espaço de fala. “Há tempos existe uma disputa em curso entre quem sempre teve o poder e insurgentes que começam a questionar isso. E ela está presente em todas as áreas”, avaliou.

Foi a partir da percepção da necessidade de ampliar esse espaço que surgiu a Rede Ciberativistas Negras, que traz um recorte de raça e gênero no desenvolvimento de tecnologias. Contando com 72 mulheres, a iniciativa busca viabilizar denúncias de violação de direitos, provocar mudanças nas políticas públicas e intensificar processos participativos.

“Somos resultado do movimento de mulheres negras e promovemos mobilizações mediadas pela tecnologia que miram em uma mudança de agenda política, que quer colocar um tema novo na ordem do dia, que quer promover uma grande discussão social, especificamente sobre o racismo estrutural que encarcera e limita as potencialidades de um grupo de pessoas. Assim, nos denominamos ciberativistas negras”, explicou. “Somos mulheres negras, ciberativistas, articuladas nacionalmente em rede em defesa das mulheres negras. Acreditamos que um outro mundo é possível. Acreditamos que uma outra Internet é possível”, acrescentou.